6.9.16

"Minha casa, minha vida"

Trechos do artigo da Cora Ronái
O Globo, Segundo Caderno, 1.9.2016

"As casas envelhecem junto com os donos. Em geral compramos os nossos imóveis no auge das nossas vidas produtivas, e eles tendem a congelar aquele momento do tempo. Os azulejos da cozinha e do banheiro, as ferragens das pias, os lustres, os interruptores: tudo fala de uma época.
Gosto de fazer arqueologia urbana nos anúncios do Zap. Eles já foram mais divertidos. Nos primeiros tempos, quando a ideia de negociar imóveis online era nova, as fotos eram ingênuas e espontâneas, e mostravam casas desarrumadas, panos de chão soltos no banheiro, roupas no varal; às vezes, aqui e ali, se via uma tia no sofá, uma criança que continuou brincando no quarto. Hoje todos já se deram conta do poder das imagens, e mesmo os mais humildes conjugados são exibidos com certa arte, paredes pintadas, janelas brilhando.
Bairros tendem a envelhecer juntos.
Em Copacabana estão os apartamentos dos velhinhos que se foram, postos à venda pelos familiares, com os seus antigos armários embutidos, os tanques de alvenaria, as torneiras que estavam tão em moda nos anos 70. Eles me lembram os apartamentos dos meus tios, os grandes triunfos materiais daqueles imigrantes trabalhadores e sofridos, postos nos trinques quando foi possível, mantidos a duras penas ao longo da vida.
Gosto de imaginar a história dos apartamentos e as vidas que passaram por eles. Gosto dos que têm personalidade, daqueles em que os moradores investiram pelo menos um pouco de criatividade além do dinheiro. Por outro lado, fico deprimida quando vejo uma enfiada de imóveis obviamente reformados para aluguel ou para serem passados adiante, despidos de qualquer humanidade nos seus materiais básicos, frios e sem erro.

Volta e meia me pego olhando para a casa, a minha casa, com olhos alheios. Gosto que ela se pareça comigo, mas não quero que tenha a minha idade. Quero que tenha a idade do seu tempo, do meu tempo, de ontem e de hoje, sem entregar de imediato que ali vive uma velhinha que se mudou em mil novecentos e antigamente.
Quero, sobretudo, que saia água das torneiras, quando abertas, e que não saia, quando fechadas.
Tenho a exata noção desse privilégio."










Fotos do Facebook da Cora.

Um comentário:

Lúcia Soares disse...

Já vi o ap dela numa foto de 360º graus, tem no blog dela, um espetáculo!
Beijo, Ana.

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