3.2.17

O mundo, como sonhamos

"Cansei do mundo dividido entre ricos e pobres, pretos e brancos, europeus e muçulmanos, intelectuais e esportistas, gremistas e colorados, pelotenses e riograndinos, brasileiros e argentinos. Cansei das pessoas que se acham melhores que as outras, por mais cultas ou poderosas, e também das que se julgam inferiores, comparando-se às primeiras. Cansei dos chantagistas e das chantagens, inclusive as sentimentais, da mesma forma que cansei de quem se deixa chantagear. Cansei dos noticiários da TV, das tragédias divulgadas com prazer mórbido e do sangue a escorrer nas páginas dos jornais. Cansei da guerra de vaidades, dos louros puxados para si, do esforço para aparecer, mas também cansei da falsa humildade, do arzinho de santo para impressionar. Cansei da hipocrisia, dos tapetes puxados de modo disfarçado e da ingenuidade exacerbada que incentiva a malandragem. Cansei até dos que se queixam de falta do que fazer, incapazes de perceber onde uma mãozinha se faz necessária.
Cansei de tanta coisa, que num rompante quase fiz as malas e, como Manuel Bandeira, fui embora pra Pasárgada. Por sorte, antes de pegar a estrada, lembrei que não sei o caminho, ninguém nunca descobriu. Assim, com meus próprios recursos, comecei a construir o mundo onde apreciaria viver.
Comecei devagarzinho, cultivando amores, como quem insiste com as violetas até vê-las se abrirem em flores. Depois, construí amizades, tijolo por tijolo, ligados entre eles com a massa da afinidade. Ao subirem as primeiras paredes, vi muitas mãos juntas às minhas, braços fortes que podiam muito mais. Ao longe, vi outros que se acercavam, desconfiados, tentando descobrir a importância da construção.
Esse mundo que sonhava, percebi, não era sonho só meu, desses que se sonha sozinho, com medo de passar por louco. Era o mundo possível e desejado, só precisava começar.
Assim, num esforço, podando aqui, acrescentando ali, continuei o trabalho. Dei crédito a quem merecia, atenção a quem precisava, carinho e força às pessoas certas em horas incertas. Busquei ser correta e leal, ainda que ás vezes ainda tropece em entulhos dispersos. Experimentei as melhores formas de usar o tempo, só pra aprender que o tempo ri da gente, enquanto foge entre os dedos, como feito de água. Não quis ser santa nem mártir, me recusei a ser vilã. Aceitei louros, distribuí homenagens e agradecimentos sinceros. Descobri que ser humana é aprendizagem preciosa e solidariedade começa em casa.
Mas também aprendi que cada um possui seu mundo e, mesmo com a maior boa vontade, não há como trocar de lugar. Pode-se ajudar a melhorar outros mundos ou contribuir para piorar. Mas cada um é responsável pelo mundo que deseja, construído com o seu próprio suor, e não vale o argumento de que cansou e vai desembarcar, porque o trabalho de construção só acaba no último tijolo."
Crônica de Marta Costa, de fev/2010.







Fotografias tiradas em 02/02/2017.
Galpão de Lata

2 comentários:

chica disse...

Crônica tão linda e cheia de verdades essa! E as fotos? MARAVILHOSAS! bjs, lindo fds! chica

Lúcia Soares disse...

Ótimo texto e lindas fotos!
Encantando-me por aqui.
Saudade dos blogs.
Beijo, Ana.

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