E que sejam cheios de conquistas, de delícias, de viagens,
de amigos queridos, de amores por perto, de paz no coração, de realizações!
"Casa perfeita é cenográfica. Não há comoção.Casa habitada tem que ter alguma coisa quebrada, estragada, imprecisa.Casa não pode ser de passagem, mas enraizada no uso.São defeitos menores que terminam arrumados por um jeitinho, por algum conserto provisório, uma ideia extravagante.Os visitantes talvez não percebam, mas você morador conhece os remendos e não revela.É uma mesa manca reequilibrada com papelão, é uma almofada rasgada virada de lado, é uma maçaneta solta que colocamos um prego, é uma infiltração na parede tapada com um quadro, é uma tomada grudada com durex, é uma gaveta com a fórmica colada com bonder, é o encanamento sanfonado da cozinha isolado com fita.É um problema que disfarçamos para um dia remediar definitivamente. Os anos passaram e nunca arrumamos.Trata-se de algo pequeno para mobilizar o acerto permanente e que também não é totalmente insignificante aos olhos.Costumamos tapear, fingir que a falha não enfeou a decoração. Acho que só um vazamento no apartamento do vizinho não tem como adiar. Já naquilo que incomoda nossa vida, sempre inventaremos um adiamento.O que está fora do lugar é o que mais me toca na residência. A pobreza que vem com o tempo. A pobreza que é o tempo vivido, partilhado, gasto.Para abrir a janela da cozinha, por exemplo, aproveitei uma régua de madeira.Peguei uma vez emprestado do material do escritório, como emergência, para espantar o cheiro de fritura. A exceção virou hábito.Agora não canso de esticar a janela com a régua para ventilar o ambiente.Se não fosse ela, seria um guarda-chuva, uma bengala, um taco de beisebol.O improviso manda na ordem doméstica. Podia visitar a ferragem da esquina e solucionar a questão rapidamente com um sarrafo, porém eu me apeguei à régua.Ela fica perto do escorredor de louça, como alarme da luz e protetor da fumaça.Eu faço o chimarrão de tardezinha e abro a janela com a régua.Vou mateando e espiando as nuvens se dissolvendo com a noite e a o borrão vermelho no declive dos edifícios.É o encontro da matemática com a poesia.Meu crepúsculo tem 80 centímetros. Exatamente. Sou o único morador do prédio capaz de medir o pôr-do-sol."
Alguns registros dos primeiros dias de calor...
Novidades? Agora temos telefone! :) E, também, mais dois moradores, os gatinhos Belinha e Samuel (nome escolhido pelo Kike).
"A depender do interlocutor, “Cozinha pra mim?” tem o efeito de um “Me beija!“. Um pedido assim é promessa de preguiça, samba e amor até mais tarde, ou o interlúdio que sucede algumas horas no COMPUTADOR para terminar um trabalho, responder os correios, buscar aquela música do fim do século passado, pagar as contas… e precede o dobro dessa quantidade de horas numa soneca de pernas enroscadas em tarde de canícula que não suporta mais do que uma salada.
Um “Cozinha pra mim?” pode ser “Vem dançar comigo” entre o meio da sala e a frente do fogão, falar sobre o dia enquanto o outro pica tudo miudinho, rir do choro involuntário e certeiro da cebola ardida, varrer os cacos daquele copo quebrado, buscar mais gelo, arriscar um samba com a colher de pau na mão, apresentar um tempero novo, abrir todas as janelas, ligar coifa e apelar para o ventilador quando o vinho jogado na assadeira do pato te faz desaparecer em nuvem de fumaça de ninja.
“Cozinha pra mim?” às vezes nem se diz com a boca, mas com o olho. É pedido de colo, neutralizador do dia ruim para um, libertador do aconchego recolhido para o outro, curativo de tantos males, aporrinhações e enfermidades agudas do espírito. Quase sempre funciona, quase nunca precisa-se verbalizar o motivo do apelo ou o resultado do calorzinho no estômago.
Tem dias em que “Cozinha pra mim?” é um “Estou com saudade…“, carinho de pai-mãe-filha-irmãos, desculpa pra tomar alguma coisa e conversar sobre a impermanência da vida e a perenidade de amor, perguntar do fulano, saber da beltrana, que bom que estão bem, apresentar uma piada nova que apareceu na INTERNET, chorar de rir e irem todos empoleirar-se na cama de um.
Há também o “Cozinha pra mim?” proferido pela cozinheira e tomado com certo espanto e terror pelo interlocutor mal acostumado e avesso ao fogão. Mal sabe ele que tudo o que ela quer depois de tantas receitas testadas e servidas e fotografadas, tudo o que ela espera depois de tantas horas em pé de avental e faixa no cabelo, tudo que a faria feliz é um arroz com ovo que seja, um café passado na hora, até uma mesa posta para o empadão trazido da padaria tá valendo.
“Cozinha pra mim?” não carece de porobséquios e sivuplés. O veludo da voz dá conta da boa educação. Nem precisa motivo, para dizer a verdade. É feito aquele presente perfeito que se encontra por acaso e entrega-se assim, sem data imposta, só porque eu vi e lembrei de você, surpresa provocadora de friozinho no estômago, sorriso de criança, abraço pendurado no pescoço e beijo barulhento na bochecha. É assim, um prazer para quem serve e para quem é servido (servir o outro é tão bom, como o mundo precisa de pequenas e grandes gentilezas…). É, por fim, das coisas mais dadivosas que se pode pedir e conceder, é quase uma declaração… Cozinha pra mim?"
Receita de Doce para duas Pessoas
É preciso 1/2 xícara de interesse, 500 gramas de atração.
Duas pitadas de mistério e sorrisos à vontade.
Doure, acrescentando verdade, cuidando sempre para que não perca o ponto da delicadeza.
Adicione como cobertura, sentimentos verdadeiros.
Sirva quente.
E divida por igual.
Neusa Doretto