"Entre a vaca e a própria natureza"
"Contaram pra nós, que aos 60 anos, seria hora de colocar o pijamão e preparar pra despedida. Era mentira. Vamos viver cem anos, e mais. Depois da correria, do batidão, das conquistas, do esforço pra seduzir a todos, teremos agora mais 40 anos a preencher.
Enganaram-nos? Pois eu penso: que maravilha estar vivo neste século! Do alto da maturidade, com paz no plexo e tempo de sobra, poderemos mergulhar sem medo no sentido das coisas, sorver a vida em profundidade, penetrar o mistério de olhos abertos.
Já que a velha senhora chega e fica para todos, pq não dar-lhe as boas vindas, aplaudir-lhe a estrada percorrida, sorrir de seus desjeitos, das dores, manias, e admirar-lhe a serenidade diante de fatos que assustam os de percurso mais curto? Há tantos exemplos a seguir, gente cheia de entusiasmo, curiosidade, vigor, alegria: Niemeyer, Fernanda Montenegro, Chico Buarque, Bibi, Papa Francisco...
Nesta linha lembrei de um livro que li há tempos, A pequena abelha, de Chris Cleave, (uma história espantosa embrulhada numa escrita poética que se contrapõe à crueza dos fatos narrados). A personagem central sugere ao leitor que passe a olhar suas cicatrizes como marcas bonitas, "porque uma cicatriz não se forma num morto, uma cicatriz significa 'eu sobrevivi'. Todas as marcas - linhas, rugas, manchas, dores - são uma forma de sobrevivência: demos conta de tudo e estamos aqui com nossa história tatuada no corpo.
Com mais ou menos marcas, não importa, não é só o velho que tem um corpo estranho. Nosso corpo é estranhíssimo em todas as fases. O bebê se sente esquisito, a menina na puberdade, os adolescentes odeiam os seus, a mulher de 40, o homem de 60.
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Não é privilégio de idosos, é coisa de gente. Ou você se transforma em uma vaca, ou trata de aceitar sua natureza. Até porque agora o futuro cresceu, e teremos que conviver com essa estranheza por mais tempo. Tire seu umbigo do caminho e deixe o tempo passar gostoso. Deixe o olhar percorrer as redondezas, tudo tão intrigante, curioso, genial, impossível não se entusiasmar. E então...mergulhar.
Como diz a velha da peça que enceno em SP:
- Li outro dia que o homem vai chegar aos mil anos. Ainda nesse século. Me deu um cansaço meio mórbido imaginar a vida cheia de percalços sem fim, aquela sucessão de crises loooongas.
A Bela Adormecida atravessou dormindo os cem anos dela. Parece mais cômodo, não é? Além do mais ainda deu a sorte de ser despertada pelo príncipe e estar incólume. Hoje, já se vive o dobro que no século passado, e às vezes penso que seria um consolo chegar logo no fim do ciclo.
Por outro lado é como você diz Terezinha, estou no ponto e ainda tem tanto por fazer, aprender um instrumento, saber cantar bonito, dar a volta ao mundo, cozinhar pratos exóticos,...puxa, que maravilha o futuro! Mil anos deve dar pro começo! "
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