É pelo fim do ano que iluminamos e miramos o que vivemos e somos. É porque termina. É porque recomeça. |
"É interessante pensar a necessidade humana de marcar o tempo, dividindo-o em ciclos, que começam e se encerram, repetindo-se ao longo da nossa vida, como os dias, meses, anos, as estações... A necessidade de contar - e conter - o tempo se faz presente a todo momento, desde o mais próximo de nós, como os segundos, minutos, horas, ao mais distante...
Ao contar, marcar e demarcar o tempo, estabelecemos inícios e fins, como marcos que atravessam a nossa existência, repetidamente, buscando elaboração, como o início e o final de todos os nossos anos. O fim do ano nos lembra e nos aproxima de que, como tudo que começa, também tem seu fim, vida e morte, início e término. Tal contagem, em ciclos, ajuda-nos em nosso processo de elaboração do que seja a vida, podendo, então, conferir-lhe valor e sentido.
Se por um lado nos aproximamos da finitude, por outro, mantemos acessa a chama da vida, em nossa necessidade de permanecer, de continuar. As famosas promessas de final de ano, cujo cumprimento é adiado para o ano vindouro, para além da procrastinação, ajudam-nos a lembrar de que existe uma continuidade pela qual precisamos aguardar. Poder contar com algo que permanece nos auxilia a manter um fio tênue de ligação, podendo contar com algo que segue.
Fernando Pessoa, ao escrever o poema “Ano Novo”, diz:
"Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento."
A vida, assim, flui. Os marcos, no plano mental, do pensamento, lugar para elaboração, ajudam-nos a lidar com o que termina, cujo contato pode nos possibilitar criar recursos para seguir, ainda mais vivos, ainda mais nutridos do que vivemos.
Mas o contar revela outra necessidade muito humana: a de conter. Contar o tempo nos coloca frente a frente com a indelével passagem do tempo, a qual desejamos tanto frear. Hoje, não raro ouvimos ou falamos “tempo, vá devagar”... Que vontade que dá de impedir o avançar do tempo, o passar dos anos, o avançar das horas! Conter pode ser impedir, mas também pode ser abrigar, reter, guardar dentro de si. E isso só podemos fazer com o fluir do tempo, com as experiências vividas e diante daquilo se encerra. Mas que não passam simplesmente, nós passamos por elas e podemos guardá-la, do modo que nos lembra o poeta Antônio Cícero, em "Guardar":
"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la,
isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é,
estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema: Para guardá-lo
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda
Guarde o que quer que guarda um poema
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar."
É pelo tempo que estamos e somos por ele. É pelo fim do ano que iluminamos e miramos o que vivemos e somos. É porque termina. É porque recomeça. O ano que termina “guarda o que guarda”, tantos voos que puderam ser voados, pelos quais se faz vigília, que se guarda, e que possibilita aguardar novos voos e seus pousos."
Nenhum comentário:
Postar um comentário