Imagens do Panorama Lavrense/Via Facebook |
Imitação da Arte
Por Mario Pinheiro
"É fevereiro. A leve brisa do verão é insuficiente para afugentar o calor e os mosquitos. A noite avança com seu manto de estrelas, sarapintando as pedras da rua principal feito confetes.
A praça, ao centro da cidade, fica num alto. De todas as ruas ladeiras, sobem as gentes para assistirem às cenas. Não tem coreto, é verdade, mas a Prefeitura instalou, bem no meio da rua principal, um palco. As pessoas chegam e amontoam-se em volta, junto com vira-latas. Algumas crianças escalam as árvores da praça. O murinho lateral da Igreja, em frente à praça, serve de palanque para outros. Embora o murmurinho, todos olham atentos para o palco agora, depois de terem passado as quadras de relaxados. Lá em cima, um grupo de qualquer jeito fala, canta e encena situações do cotidiano da cidade, entre risos e olhares cúmplices.
Alguns observam as cenas à distância, absorvidos por sua telúrica, em volta das mesas do bar que fica numa das margens da praça. Outros namoram no beco escuro do outro lado da Igreja, sob os olhares dos anjos e das estrelas, somente com os ouvidos livres e atentos ao som do alto-falante. Atrás do palco, na esquina que fica defronte aos fundos da Igreja, acha-se o Clube Comercial, já ansioso por estremecer ao ritmo de uma marchinha de carnaval.
É fevereiro. E em todos os anos é sempre assim. A cidade encontra-se na praça a expiar seus pecados, a rir de suas misérias, a ridicularizar seus moradores e governantes. Durante o ano, espiam-se uns aos outros, sorrateiramente, pelas frestas das janelas. Em fevereiro, no carnaval, expiam todos, publicamente, seus pecados na praça.
No palco, são narrados, encenados e satirizados seus deslizes. Em versos e prosas, sem piedade ou censura, critica-se a decadência da ex-cidade dourada, a obra “faraônica” do prefeito, o último “assassinato” cometido pelo médico local, o desfalque praticado no banco, a surra dada pela esposa no marido adúltero...
Ao mesmo tempo em que são reforçados alguns preconceitos, denunciam-se as hipocrisias. A cidade desnuda-se no palco. Atenas e seu teatro ressurgem no palco agora.
É fevereiro. Os coveiros não estão em greve. Mas, por certo, encontram-se, também, ali na praça. Igualmente, não são os mortos-vivos que denunciam as mazelas dos cidadãos “respeitáveis” e muito vivos. São os vivos, mesmo, que criticam tudo e todos, inclusive os mortos. Por meio de paródias, a cidade e sua elite fazem sua autocrítica, numa espécie de terapia coletiva. Aqui e agora, o carnaval é uma catarse...
Tal como em Antares, a da veríssima história, a pequena Lavras do Sul, no carnaval, é o cenário dessas histórias verissímeis. É a vida criticando a vida, é a vida imitando a arte."
Nota do autor: "A crônica é inspirada no livro “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo, em que há uma greve de coveiros e os mortos levantam-se dos caixões, depositados na frente do cemitério, e vão para a praça, expondo as mazelas da cidade de Antares e de seus habitantes.
Só no fim, esclarece que se está falando do carnaval de Lavras do Sul e não de Antares.
Vira-latas, Vai de Qualquer Geito (assim com G) e Relaxados são os nomes dos blocos de carnaval da cidade e são mencionados no texto. As quadrinhas dos Relaxados são versos satíricos recitados pelo bloco em jogral no estilo medieval. Telúrica é o nome do bar."
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SINOPSE DE "INCIDENTE EM ANTARES":
"É 11 de dezembro de 1963. Greve geral em Antares. O fornecimento de luz é interrompido, os telefones não funcionam mais, os coveiros encostam as pás. Dois dias depois, uma sexta-feira 13, sete pessoas morrem - entre elas d. Quitéria, matriarca da cidadezinha. Insepultos e indignados, os defuntos resolvem agir - querem ser enterrados. Reunidos no coreto, decidem empestear com sua podridão o ar da cidade. Enquanto ninguém os enterra, porém, resolvem acertar as contas com os vivos e passam a bisbilhotar e infernizar a vida dos familiares."
Acho que a Rádio Galocha é anterior ao livro do Veríssimo.
Vou pesquisar.
:)
Se assim for, Veríssimo se inspirou no Carnaval de Lavras! Heheheh!
Atualizando, em 27/02/2015:
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"A Galocha teve sua primeira edição por volta de 1939; infelizmente não temos dados precisos dos incipientes autores e programação [...]" - Dados retirados do livro "45 CARNAVAIS, SUA HISTÓRIA E TRADIÇÕES".
Informação dada pela Professora Rosângela La-Rocca Teixeira, via Facebook.
2 comentários:
Bom dia amiga Ana!
O amigo Mario Pinheiro dispensa comentário independente de ser um amigo de muitas décadas, como jornalista sempre foi expert em suas matérias até pelo conhecimento que tem, e ñ poderia ser diferente esse texto acima dele com relação a Radio Galocha muito bem redigido e colocado de uma forma transparente e inteligente, por isso cumprimentos ao blog ROCCANA, pelo destaque e reconhecimento dessa homenagem a esse jornalista respeitado e imparcial da nossa imprensa da Região da Campanha.
Obrigada, Miltom, por este retorno.
Escrita boa é assim: faz pensar, faz sonhar, entender, relembrar...
Também gostei muito da crônica!
Grande abraço!
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